

Luciana Beek
A lei consagrou a personalidade jurídica das sociedades, que não se confunde com a de seus sócios, bem como a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, o que possibilitou o incremento do desenvolvimento econômico e a lícita alocação de riscos. Com efeito, a autonomia da personalidade jurídica tem fundamento constitucional, qual seja, o principio da liberdade de iniciativa e economia de mercado.
A personalidade jurídica distinta da personalidade dos sócios e o princípio da autonomia patrimonial da empresa estão previstos nos artigos 49-A e 1.024 do Código Civil, in verbis:
Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.
Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.
Porém, tal situação dá ensejo, por vezes, ao cometimento de fraudes, motivo pelo qual a doutrina, a jurisprudência e, enfim, a lei criaram o mecanismo de desconsideração da personalidade jurídica.
O Professor Fabio Ulhoa Coelho, em sua obra Novo Manual de Direito Comercial – direito de empresa (32ª edição, Editora revista dos Tribunais, 2021, p. 141) assim define o instituto:
“... por vezes, a autonomia patrimonial da sociedade empresária dá margem à realização de fraudes. Para coibi-las, a doutrina criou, a partir de decisões jurisprudenciais (nos EUA, Inglaterra e Alemanha, principalmente), a “teoria da desconsideração da personalidade jurídica”, pela qual se autoriza o Poder Judiciário a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que ela tiver sido utilizada como expediente para a realização de fraude. Ignorando a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar-se, direta, pessoal e ilimitadamente, o sócio por obrigação que originalmente cabia à sociedade.”
A desconsideração da personalidade jurídica está prevista, no ordenamento jurídico brasileiro, nos seguintes artigos de lei: art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, art. 34 da Lei Antitruste, art. 4º da Lei 9.605/98 (meio ambiente) e art. 50 do Código Civil:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
A desconsideração da personalidade jurídica deverá ser reconhecida através de incidente processual específico, conforme previsto no art. 133 do Código de Processo Civil, cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial, suspendendo o processo, salvo se o pedido de desconsideração for requerido em petição inicial.
Importante ressaltar que, conforme a regra geral contina no artigo 50 do Código Civil, os pressupostos para a desconsideração são - desvio de finalidade (assim entendido como utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza) e - confusão patrimonial (ausência de separação de fato entre o patrimônio da sociedade e dos seus sócios/administradores). Nota-se a necessidade do elemento subjetivo, da intenção de fraude.
Não basta, pois, a simples insolvência ou inadimplemento da sociedade no cumprimento de suas obrigações, havendo a necessidade da comprovação dos pressupostos previstos em lei, sem os quais o julgador deve privilegiar e manter a autonomia patrimonial da sociedade e a sua personalidade.